quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Eu, Etiqueta.

Em minha calça está grudado um nome que não é meu de batismo ou de cartório, um nome...estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida que jamais pus na minha boca, nesta vida.
Em minha camiseta, a marca de cigarro que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto que nunca experimentei, mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido de alguma coisa não provado por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, minha gravata, e cinto e escova e pente, meu corpo, minha xícara, minha toalha de banho e sabonete, meu isso, meu aquilo, desde a cabeça ao bico dos meus sapatos, são mensagens, letras falantes, gritos visuais, ordens de uso, abuso, reincidência, costume, hábito, premência, indispensabilidade, e fazem de mim homem - anúncio itinerante, escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É doce estar na moda, ainda que a moda seja negar minha identidade, com outros seres diversos e conscientes de sua humana, invencível condição.
Agora sou anuncio, ora vulgar ora bizarro, em língua nacional ou em qualquer língua (qualquer principalmente).
E nisto me comprazo, tiro glória de minha anulação.
Não sou - vê lá – anuncio contratado.
Eu é que mimosamente pago para anunciar, para vender em bares festas praias pérgulas piscinas, e bem á vista exibo esta etiqueta global no corpo que desiste de ser veste e sandália de uma essência tão viva, independente, que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora meu gosto e capacidade de escolher, minhas idiossincrasias tão pessoais, tão minhas que no rosto se espelham, e cada gesto, cada olhar, cada vinco da roupa resumia uma estática?
Hoje sou costurado, sou tecido, sou grado de forma universal, saio da estamparia, não de casa, da vitrine me tiram, recolocam, objeto pulsante mas objeto que se oferece como signos de outros trocá-la por mil, açambarcando todas as marcas registradas, todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser eu que antes era e me sabia tão diverso de outros, tão mim mesmo, ser pensante, sentinte e solidário.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso de ser eu,mas artigo industrial, peço que meu nome retifiquem. Já não me convém o título de homem, meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente.

ANDRADE, Carlos Drummond de. O corpo. Rio de Janeiro: Record, 1984. p.85-87.